Nunca houve tantos
modismos na dieta. Dieta sem
glúten, sem lactose, sem gordura, sem
carboidratos, sem nada que venha dos animais, e até dietas sem alimentos que
contenham DNA (pedras, talvez).
A história de nossos antepassados é a
da miséria. Dos 6 milhões de anos de nossa espécie, pelo menos 99,9% do tempo
caçávamos, pescávamos, coletávamos frutos e raízes e disputávamos carcaças de animais
com outros carnívoros famintos.
Há insignificantes 10 mil anos, o
surgimento da agricultura criou a oportunidade de abandonarmos a vida nômade e
armazenarmos víveres para a época das vacas magras.
Ainda assim, as epidemias de fome e a
desnutrição chegaram até os dias atuais. Na metade do século passado, havia
fome coletiva na França, Inglaterra, Alemanha e demais países da Europa
deflagrada.
Comida farta só chegou à mesa de
grandes massas populacionais depois da Segunda Guerra Mundial, graças à mecanização
e aos avanços da agricultura e da tecnologia de conservação de alimentos. Hoje,
um brasileiro de classe média tem acesso a refeições mais variadas e nutritivas
do que as dos nobres nos castelos medievais.
A fartura trouxe o exagero. Um cérebro
com circuitos de neurônios moldados em tempos de penúria não desenvolveu
mecanismos de saciedade, capazes de frear os impulsos viscerais despertados
pela fome, antes de nos empanturrarmos até passar mal de tanto comer.
Essencial à sobrevivência, quando
precisávamos acumular reservas para os longos períodos de jejum que se
sucediam, essa estratégia se voltou contra nós.
Ao mesmo tempo, vão distantes os dias
em que gastávamos energia para alimentar a família. Pela primeira vez na
história da humanidade, desfrutamos o privilégio de ganhar o sustento sentados
em cadeiras confortáveis. A um toque de celular o disque-pizza nos entrega 5
mil calorias à porta, sem sairmos do sofá.
Fartura e
sedentarismo, gula e preguiça criaram as raízes da
epidemia
de obesidade que assola o mundo. Novembro de 2016
foi o primeiro mês dos tempos modernos em que a expectativa de vida diminuiu em
relação à do mês anterior, nos Estados Unidos.
Seguimos pelo mesmo
caminho. A continuar nesse passo, a obesidade e a
vida
sedentária farão
nossos filhos viver menos do que nós.
Sem disposição nem coragem para
encarar a realidade de que comemos mais do que o necessário e andamos menos do
que deveríamos, procuramos uma saída mágica que nos mantenha saudáveis.
Inventamos teorias
mirabolantes que a internet divulga com tal velocidade, que se transformam em
ideologias com manadas de defensores ardorosos: carne é veneno, nenhum animal
adulto toma
leite, glúten engorda e incha, suco de
berinjela reduz
colesterol, e tantas outras.
É desperdício de tempo e risco de
perder amigos questionar essas crenças. Não adianta dizer que nossos
antepassados não teriam sobrevivido não fosse a carne, que alimentos com glúten
costumam conter carboidratos simples com índices glicêmicos elevados, que a
coitada da berinjela jamais teve a pretensão de proteger alguém contra o ataque
cardíaco e que onças adultas não tomam leite pela mesma razão que não bebem chope
nem água encanada.
Para confundir ainda mais, estudos com
resultados que exigiriam interpretações estatísticas cautelosas e confirmação
em pesquisas mais elaboradas, ganham destaque nas mídias como se apresentassem
conclusões definitivas. Num dia, o ovo é uma bomba de colesterol prestes a
explodir as coronárias; no outro, asseguram que tem alto valor nutritivo. A
carne de porco, que já foi a mãe de todos os males, está reabilitada; a de boi
enfrenta suspeitas.
A confusão acontece porque esses
estudos costumam ser observacionais. Neles, são analisadas as características
dietéticas de uma população e as enfermidades que a afligem. Em ciência,
publicações desse tipo são consideradas apenas geradoras de hipóteses. Para
confirmá-las, são fundamentais os estudos prospectivos, randomizados, muito
mais complexos, dispendiosos e demorados.
Perdido na selva de informações
desencontradas, o que você deve fazer, leitor? Coma frutas, saladas e verduras
com liberalidade; do resto, de tudo um pouco. Procure comer o que sua avó
considerava comida.
Publicado em 06/02/2017.
Fonte: https://drauziovarella.com.br/drauzio/artigos/gluten-lactose-e-outras-modas/